Dez tecnologias estão reduzindo, e até eliminando, os princípios básicos dos modelos econômicos baseados em escassez, que impulsionaram, até agora, o valor de mercado para as empresas. Saiba quais são e entenda seus impactos
Recentemente estudei um texto muito instigante, “The Future of Value”, preparado pelo governo canadense. É um interessante estudo de como a convergência de tecnologias emergentes ou já em maturação possibilitam mudanças significativas na economia, criando novas maneiras de realizar atividades de negócios e gerar valor.
Embora a sociedade humana sempre tenha evoluído com avanços tecnológicos, passando pelo arado, máquinas a vapor, motores de combustão interna e a internet, a velocidade e o alcance das mudanças que já estão ocorrendo podem ser diferentes de tudo que vimos antes.
As novas tecnologias estão reduzindo, e até eliminando, os princípios básicos dos modelos econômicos baseados em escassez, seja de mão de obra, materiais e conhecimento, que impulsionaram, até agora, o valor de mercado para as empresas. Por valor, entendemos a quantidade de dinheiro recebida pela venda de um bem ou serviço em uma economia de mercado. Isso pode assumir a forma de preços, salário, juros ou aluguel.
Muitos dos setores, empregos e profissões que conhecemos estão mudando. Alguns se transformarão, enquanto outros desaparecerão. E, novos setores e profissões surgirão com o tempo ou mesmo de forma repentina.
A maioria das análises concentra-se em como a transformação econômica afetará setores, empregos ou profissões. No entanto, existe outra maneira de pensarmos sobre o que está acontecendo: examinar as atividades humanas utilizadas pelas empresas. Essa abordagem, adotada pelo estudo, pode nos fornecer percepções adicionais e inovadoras sobre as transformações que poderão surgir.
Dez tecnologias estão catalisando essas profundas mudanças de valor: a internet das coisas, inteligência artificial (IA) e softwares de automação, robótica, telepresença, realidade virtual e aumentada, tecnologias de produção descentralizadas (por exemplo, impressão 3D), tecnologias biodigitais, materiais avançados, blockchain e conectividade de alta velocidade, como a 5G.
A onda de choque provocada pela sua convergência (não podemos imaginar tecnologias isoladamente provocando, por si, mudanças significativas) vai afetar toda a economia e, por tabela, a sociedade. Portanto, devemos analisar seus efeitos potenciais e tentar nos adequar, seja como profissional, empresa ou país, para aproveitar de forma positiva seu potencial de transformação.
Uma análise centrada em setores de negócio, por exemplo, pode observar que os caminhões autônomos podem transformar o setor de transporte, eliminando a necessidade de motoristas humanos. Uma análise baseada em atividades vai muito mais longe.
Ela reconhece que essas mesmas tecnologias poderiam ser transferidas para outros setores, como agricultura e mineração, que também envolvem o uso humano de ferramentas, dispositivos e objetos similares. Ou seja, pode identificar mudanças potenciais em outros setores antes que elas aconteçam, isto é, prever a onda do tsunami antes dela chegar no litoral.
A análise das atividades, considerando o efeito da convergência, nos permite ver um panorama muito mais abrangente. Por exemplo, se juntarmos a IA dos veículos autônomos com a evolução das impressoras 3D, podemos considerar que talvez até a demanda por caminhões diminua, caso seja possível imprimir objetos e até alimentos próximos de onde serão utilizados ou consumidos.
O aumento no uso de impressão 3D pode transferir o valor do setor de transporte para outros, como designers de modelos de produtos digitais, fornecedores de infraestrutura digital e fabricantes de impressoras 3D. A onda de choque das mudanças pode afetar até setores que, à primeira vista, se sintam intocáveis.
Vale a pena ler o relatório “33 Industries Driverless Cars Will Transform” que mostra como setores como aluguel de espaço de coworking, hotéis e empresas aéreas podem, potencialmente, serem impactados pelos veículos autônomos e demais tecnologias convergentes.
O estudo canadense identifica quatro tipos diferentes de escassez que impulsionam a criação de valor em uma economia.
1) Escassez espacial: uma escassez ou restrição com base no local. Um humano precisa estar em um determinado lugar para que uma interação aconteça (por exemplo, para cortar o cabelo, você precisa estar no mesmo lugar que o cabeleireiro). Insumos específicos, como petróleo ou gás natural, podem estar disponíveis apenas em um número limitado de lugares do mundo.
2) Escassez temporal: uma escassez ou restrição baseada no tempo. Por exemplo, uma pessoa precisa estar disponível em um horário específico para que a interação prossiga, como em uma consulta médica. Também pode ser uma entrada, serviço ou produto específico que está disponível apenas em um horário específico (por exemplo, um jogo de futebol ou show ao vivo).
3) Escassez absoluta: uma escassez ou restrição baseada na quantidade, na qual existe uma quantidade finita de algo. Por exemplo, um recurso mineral; uma coisa única como o quadro da Mona Lisa; ou uma pessoa específica com um conjunto de habilidades exclusivo. A escassez absoluta inclui expertise, que pode ser dividida em duas partes: conhecimento (saber fazer uma tarefa) e habilidade (capacidade de fazer a tarefa).
4) Escassez artificial: uma estrutura para criar uma das outras escassezes. Por exemplo, um sistema de permissão que dá a alguém direitos exclusivos sobre algo, um sistema que aprova ou certifica certas habilidades ou a regulamentação de propriedade intelectual.
Os quatro tipos de escassez estão frequentemente presentes juntas em uma transação de negócios. Por exemplo, para obter os serviços de um médico, uma pessoa precisa estar em um local específico (escassez espacial) em um momento específico (escassez temporal). E existe um número finito de pessoas com as competências necessárias (escassez absoluta) e apenas aquelas com a respectiva acreditação estão autorizadas a prestar o serviço (escassez artificial).
Como a convergência tecnológica impacta esse modelo? Por exemplo, o uso da realidade virtual e aumentada pode permitir que uma pessoa com habilidades menos especializadas forneça o serviço com a ajuda de alguém em outro lugar, como um especialista atuando remotamente.
A robótica e a IA podem permitir que robôs produzam as peças mais simples, deixando que os humanos façam as peças mais complexas. Ou, o robô pode ele mesmo fazer peças complexas, mas com supervisão e orientação humana. E, em última análise, os robôs poderiam fornecer o serviço sem a ajuda de um humano. A escassez de capacidades específicas, nesse caso, produzir uma peça complexa, deixa de existir.
O valor também pode mudar os mercados imobiliário e de transporte. Por exemplo, humanos com experiência, como médicos trabalhando com teleconsulta e diagnósticos por IA, não precisam mais morar perto de seus clientes. Eles podem fornecer o serviço para cidades distantes, a partir de um único local, sem necessidade de deslocamento dele ou do cliente.
Já vemos, por exemplo, a utilização de IA em atividades antes inteiramente humanas, como terapias mentais. O artigo “Is robot therapy the future?” mostra que já existe possibilidades de uso colaborativo entre humanos e algoritmos de IA no tratamento terapêutico de pessoas com problemas de saúde mental.
A robótica e a IA também podem permitir que muitos objetos operem de forma autônoma ou com menos interferência de um ser humano especialista. Um caminhão rodando nas estradas sem motoristas. E à medida que mais objetos se tornam “inteligentes”, eles podem ser acessados e reparados remotamente. E a realidade virtual e aumentada pode permitir que uma pessoa que interaja com o objeto receba orientações de um especialista localizado remotamente.
A IA tem o potencial de quebrar a escassez de conhecimento básico e aplicado. A IA pode ingerir grandes volumes de dados e transformá-los em informações úteis, como notícias e interpretação de esportes ao vivo. A IA pode descobrir padrões e meta-informação mais rápido do que os humanos ou mesmo que os humanos não conseguem encontrar. Pode até ser capaz de quebrar a escassez de criatividade, inventando soluções novas e úteis, como um movimento no jogo Go que um jogador humano nunca considerou.
As simulações digitais podem quebrar a escassez de espaço físico e equipamentos necessários para a geração de conhecimento: a simulação por software de experimentos de compostos moleculares e a criação de novas drogas (Artificial intelligence could be new blueprint for precision drug Discovery); criação de música em computadores sem instrumentos ou estúdio de som (In Computero: Hear How AI Software Wrote a ‘New’ Nirvana Song); criação de filmes com imagens geradas por computador sem atores ou sets de filmagem (Can AI Make a Hit Netflix Movie?).
A escassez de conhecimento e sua transferência para outras pessoas (processo de aprendizado) podem ser transformados por chatbots baseados em IA, que podem quebrar a escassez de experiência, personalizando respostas e conselhos. O valor muda dos criadores do conhecimento para incluir os distribuidores do conhecimento. E muda de locais físicos (como escolas, laboratórios e clínicas) e infraestrutura de transporte, para infraestrutura digital e dispositivos de interface.
Esses são apenas alguns poucos exemplos das ondas de choque que a economia digital poderá gerar. Assim, analisar a ruptura tecnológica da economia pelas lentes das atividades humanas básicas pode ajudar empresas, instituições acadêmicas, indivíduos e formuladores de políticas a entender o que está acontecendo com a economia e os negócios.
Teremos mais condições de responder com mais assertividade a questões chave como:
1) Quais são os tipos de trabalhos e profissões mais prováveis de serem afetados? Como as pessoas que trabalham nessas profissões poderiam ser retreinados ou aprimorados?
2) A adoção de novas tecnologias permitiria aos governos fornecer melhores serviços públicos a custos mais baixos?
3) À medida que se torna mais fácil para as pessoas trabalharem separadamente de seus colegas e/ou seus equipamentos, os imóveis comerciais ou industriais cairão de valor? Como poderiam ser usados de forma diferente?
4) Os escritórios domésticos ou centros de trabalho baseados nas vizinhanças das moradias se tornarão mais valiosos? O valor da internet aumentará? O valor do transporte suburbano diminuirá? Como os governos devem responder às mudanças nas necessidades de infraestrutura?
5) Que aspectos das mudanças de valor desejamos acelerar? Quais queremos desacelerar? Como as estruturas regulatórias e políticas podem influenciar a velocidade e a profundidade das interrupções digitais e biodigitais?
6) As empresas transformadas criariam vulnerabilidades para áreas importantes da economia? Qual a melhor maneira da política e regulação lidar com esses novos riscos?
7) Quais são os custos ou benefícios de acelerar ou moderar mudanças? Como as mudanças no valor afetarão diversos setores da economia?
8) O que isso significa para os modelos econômicos e as estratégias de desenvolvimento econômico? Como isso pode afetar o regime tributário?
Com essa visão, podemos nos preparar melhor para criar o futuro. Podemos ter uma visão mais clara de que novas empresas podem ser criadas e que novos negócios podem ser gerados. E, claro, podemos identificar como diferentes atores poderão responder às mudanças de valor na economia.
Fonte:neofeed.com.br
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